Walter Faria, dono da cervejaria Itaipava, conseguiu renegociar em 24 horas empréstimo camarada com o Banco do Nordeste. Cinco dias depois, depositou R$ 5 milhões na conta do comitê da petista
MURILO RAMOS, COM MARCELO ROCHA, FILIPE COUTINHO E FLÁVIA TAVARES
23/01/2015 21h59 - Atualizado em 27/01/2015 16h48
No começo de 2013, o empresário Walter Faria, dono da Cervejaria Itaipava, a segunda maior do país, queria expandir seus negócios ao Nordeste. A primeira parte do plano envolvia a construção de fábricas na região. Ele optou por erguer a primeira em Alagoinhas, na Bahia, em razão de generosos incentivos fiscais. Faltava o dinheiro para a obra, e conseguir crédito não seria uma missão fácil. Faria e seu Grupo Petrópolis, que controla a Itaipava, tinham nome sujo na praça – e uma extensa ficha policial. Deviam R$ 400 milhões à Receita, em impostos atrasados e multas por usar laranjas, além de notas fiscais. Em 2005, Faria fora preso pela Polícia Federal, acusado de sonegação fiscal. Ficou dez dias na carceragem da PF. Três anos depois, em outra operação da PF, Faria acabou denunciado pelo Ministério Público Federal por corrupção ativa, formação de quadrilha e por denúncias caluniosas. Segundo as investigações, Faria armara um esquema para retaliar os fiscais da Receita que haviam autuado sua cervejaria anos antes. Iria difamá-los. Contratara para o serviço ninguém menos que o operador do mensalão, Marcos Valério Fernandes de Souza. A PF encontrou R$ 1 milhão na sede da Itaipava em São Paulo – dinheiro que, segundo a acusação, serviria para pagar chantagistas. Valério foi preso. Mas Faria perseverou.
Diante dessa ficha, qual banco toparia emprestar dinheiro para Faria e suas empresas? O Banco do Nordeste, o BNB, criado no governo de Getúlio Vargas para ajudar no desenvolvimento econômico da região – mas que, desde então, é usado com alarmante frequência para ajudar no desenvolvimento econômico dos políticos que mandam nele. Desde que o PT chegou ao poder, em 2003, o BNB, custeado com R$ 13 bilhões em dinheiro público, vem sendo aparelhado pelo partido. As previsíveis consequências transcorreram com regularidade desde então. Escândalos, escândalos e mais escândalos. O último deles, em 2012, revelado por ÉPOCA, derrubou a cúpula do banco após a PF entrar no caso – e deflagrou uma cascata de investigações dos órgãos oficiais, como a Receita, o Tribunal de Contas da União e o MP. Apesar disso, o aparelhamento petista no BNB perseverou, como Faria perseverara. Ambos perseveraram porque partidos como o PT precisam de empresários como Walter Faria, e empresários como Walter Faria precisam de partidos como o PT.
No segundo mandato de Lula, Faria, segundo fontes do PT e no BNB, tornou-se próximo dos líderes do partido, como o ex-presidente da República e o tesoureiro informal da legenda, João Vaccari. E manteve essas boas relações. Pelas leis da política, a história que se narra a seguir – fundamentada em documentos internos do BNB, relatórios do TCU e entrevistas com os envolvidos – era inevitável. Ainda no começo de 2013, Faria conseguiu obter do BNB um empréstimo de R$ 375 milhões para construir a fábrica na Bahia. Naquele momento, a nova cúpula do BNB, sob o trauma recente do escândalo que derrubara a diretoria anterior, relutava em fazer negócio com Faria. O então presidente do banco, Ary Joel Lanzarin, fez questão de que Faria apresentasse garantias sólidas para o empréstimo. Exigiu uma garantia conhecida como carta-fiança, em que outro banco garante cobrir o valor devido em caso de calote. Para quem empresta, como o BNB, é um ótimo negócio – praticamente zera o risco de calote. Para quem recebe o dinheiro, nem tanto. Uma carta-fiança tem um custo anual, que varia entre 0,5% e 3% do total do empréstimo.
Durante as tratativas, Faria reclamava. Dizia que perderia muito dinheiro com a carta-fiança. Mas capitulou. Ao fim, obteve dois empréstimos, ambos sob as mesmas condições. O de R$ 375 milhões seria destinado à construção da fábrica em Alagoinhas. Outro, fechado depois, em abril de 2014, no valor de R$ 452 milhões, serviria para construir outra fábrica da Itaipava, em Pernambuco. No total, portanto, Faria obteve quase R$ 830 milhões do BNB. Cada empréstimo tinha como principal garantia uma carta-fiança, que cobria integralmente o valor emprestado pelo BNB. Faria teria juros baixos, 11 anos para pagar e dois anos de carência para começar a devolver o dinheiro. Os técnicos do BNB classificaram a operação como segura, em virtude da carta-fiança.
Em conversas com os diretores do BNB, no entanto, Faria não desistia de rever a garantia da carta-fiança. Queria porque queria que o banco abdicasse dela, topando ter como principal garantia as fábricas construídas com o dinheiro emprestado. Faria dizia, nesses encontros, que a exigência da fiança lhe custava o equivalente a 2% do valor dos empréstimos – o equivalente a quase R$ 17 milhões ao ano. Para o BNB, era um pedido aparentemente impossível de atender, como seria para qualquer banco privado. Ainda mais porque, pelo contrato de empréstimo, os juros eram pré-fixados. Ou seja: o BNB não poderia compensar a garantia pior com um aumento nos juros do empréstimo. Segundo as regras do Banco Central e três especialistas de três grandes bancos, se o BNB aceitasse as condições de Faria, teria de rebaixar internamente a classificação de qualidade do empréstimo. Essa medida é obrigatória e forçaria o BNB a reservar dinheiro próprio para pagar ao menos parte da dívida de Faria, caso ele desse calote. No jargão do mercado, isso se chama “provisionamento”. Nenhum banco toparia fazer isso. É um péssimo negócio. “Nunca vi alguém aceitar algo parecido”, diz um economista que trabalha com esse tipo de operação para um grande banco brasileiro.
Mas o impossível é sempre uma possibilidade na política brasileira. Ainda em abril de 2014, Ary Lanzarin, o presidente que tentava moralizar o BNB, deixou o cargo. O PT pressionava para voltar ao comando absoluto do banco. A presidente Dilma Rousseff aceitou. As diretorias do BNB foram entregues novamente a afilhados de políticos petistas, como o ministro da Defesa, Jaques Wagner. Procurado por ÉPOCA, Wagner preferiu não comentar o assunto. O jogo mudara.
Meses depois, no auge da campanha à reeleição de Dilma e dos esforços de arrecadação dos petistas, Faria conseguiu o impossível. No dia 10 de setembro, protocolou o pedido de dispensa da fiança do empréstimo da fábrica na Bahia. Uma semana depois, o pedido foi analisado – numa velocidade espantosa para os padrões de um banco tão lento e burocrático quanto o BNB. Num intervalo de pouco mais de 24 horas, o pedido passou por cinco instâncias do BNB e foi aprovado pelo Conselho de Administração do banco, segundo os documentos obtidos por ÉPOCA. Estava no papel: o BNB aceitara, em tempo recorde, abdicar de uma garantia 100% segura por outras mequetrefes, se comparadas à carta-fiança. De quebra, teve de reservar R$ 3,6 milhões no balanço – o tal “provisionamento” – para cobrir o mau negócio que fechara.
Alguns técnicos do banco não gostaram da solução encontrada. Para demonstrar insatisfação, deixaram claro que a dispensa da fiança não seria inócua para o BNB. Em um documento interno obtido por ÉPOCA, funcionários afirmaram: “O nível de risco atualmente corresponde a 8,75 (AA), quando considerada a fiança bancária. Quando considerada a garantia hipotecária do complexo industrial, passa a ser 6,05 (B)” (leia abaixo). Fica claro que a substituição da fiança só interessava mesmo a Faria. A decisão do BNB também contrariou frontalmente uma das principais cláusulas que permitiram a assinatura do contrato: “Outras instituições financeiras de primeira linha estarão comprometidas com o projeto durante o prazo de 11 anos, visto que a fiança que comporá a garantia da operação terá vigência por todo o período do financiamento”.
No dia 29 de setembro, apenas 12 dias após seu Grupo Petrópolis obter o impossível no BNB, Faria depositou R$ 5 milhões na conta da campanha de Dilma. Até o dia 3 de outubro, a campanha dela receberia outros R$ 12,5 milhões. No total, Faria doou R$ 17,5 milhões. Tornou-se, assim, o quarto maior doador da campanha da presidente. É aproximadamente esse valor que Faria gastaria com as fianças anuais dos dois empréstimos. O pedido para que o segundo empréstimo, o da fábrica em Pernambuco, também seja dispensado da carta-fiança será feito em breve. Segundo fontes na cúpula do BNB, está encaminhado para ser aprovado.
Procurado por ÉPOCA, o Grupo Petrópolis afirmou, por meio de nota, que a dispensa da fiança gerou economia para a empresa, mas não disse quanto. Afirmou ainda que a fiança foi substituída por outras garantias com “valores até maiores”. Ainda de acordo com a nota, Faria conhece Vaccari, mas negou ter pedido ajuda a ele ou a qualquer pessoa para que a fiança usada no empréstimo do BNB fosse dispensada. Disse, ainda, que todas as doações à campanha da presidente Dilma cumpriram as regras eleitorais. Também por meio de nota, Vaccari disse jamais ter tratado do interesse de qualquer empresa com o BNB. O presidente do BNB, Nelson de Souza, afirmou que a substituição da fiança está prevista nas regras do banco e que nunca esteve com o empresário Walter Faria. Disse, no entanto, que o empresário já esteve com dirigentes do banco para tratar assuntos do interesse dele.
No segundo mandato de Lula, Faria, segundo fontes do PT e no BNB, tornou-se próximo dos líderes do partido, como o ex-presidente da República e o tesoureiro informal da legenda, João Vaccari. E manteve essas boas relações. Pelas leis da política, a história que se narra a seguir – fundamentada em documentos internos do BNB, relatórios do TCU e entrevistas com os envolvidos – era inevitável. Ainda no começo de 2013, Faria conseguiu obter do BNB um empréstimo de R$ 375 milhões para construir a fábrica na Bahia. Naquele momento, a nova cúpula do BNB, sob o trauma recente do escândalo que derrubara a diretoria anterior, relutava em fazer negócio com Faria. O então presidente do banco, Ary Joel Lanzarin, fez questão de que Faria apresentasse garantias sólidas para o empréstimo. Exigiu uma garantia conhecida como carta-fiança, em que outro banco garante cobrir o valor devido em caso de calote. Para quem empresta, como o BNB, é um ótimo negócio – praticamente zera o risco de calote. Para quem recebe o dinheiro, nem tanto. Uma carta-fiança tem um custo anual, que varia entre 0,5% e 3% do total do empréstimo.
Durante as tratativas, Faria reclamava. Dizia que perderia muito dinheiro com a carta-fiança. Mas capitulou. Ao fim, obteve dois empréstimos, ambos sob as mesmas condições. O de R$ 375 milhões seria destinado à construção da fábrica em Alagoinhas. Outro, fechado depois, em abril de 2014, no valor de R$ 452 milhões, serviria para construir outra fábrica da Itaipava, em Pernambuco. No total, portanto, Faria obteve quase R$ 830 milhões do BNB. Cada empréstimo tinha como principal garantia uma carta-fiança, que cobria integralmente o valor emprestado pelo BNB. Faria teria juros baixos, 11 anos para pagar e dois anos de carência para começar a devolver o dinheiro. Os técnicos do BNB classificaram a operação como segura, em virtude da carta-fiança.
Em conversas com os diretores do BNB, no entanto, Faria não desistia de rever a garantia da carta-fiança. Queria porque queria que o banco abdicasse dela, topando ter como principal garantia as fábricas construídas com o dinheiro emprestado. Faria dizia, nesses encontros, que a exigência da fiança lhe custava o equivalente a 2% do valor dos empréstimos – o equivalente a quase R$ 17 milhões ao ano. Para o BNB, era um pedido aparentemente impossível de atender, como seria para qualquer banco privado. Ainda mais porque, pelo contrato de empréstimo, os juros eram pré-fixados. Ou seja: o BNB não poderia compensar a garantia pior com um aumento nos juros do empréstimo. Segundo as regras do Banco Central e três especialistas de três grandes bancos, se o BNB aceitasse as condições de Faria, teria de rebaixar internamente a classificação de qualidade do empréstimo. Essa medida é obrigatória e forçaria o BNB a reservar dinheiro próprio para pagar ao menos parte da dívida de Faria, caso ele desse calote. No jargão do mercado, isso se chama “provisionamento”. Nenhum banco toparia fazer isso. É um péssimo negócio. “Nunca vi alguém aceitar algo parecido”, diz um economista que trabalha com esse tipo de operação para um grande banco brasileiro.
Mas o impossível é sempre uma possibilidade na política brasileira. Ainda em abril de 2014, Ary Lanzarin, o presidente que tentava moralizar o BNB, deixou o cargo. O PT pressionava para voltar ao comando absoluto do banco. A presidente Dilma Rousseff aceitou. As diretorias do BNB foram entregues novamente a afilhados de políticos petistas, como o ministro da Defesa, Jaques Wagner. Procurado por ÉPOCA, Wagner preferiu não comentar o assunto. O jogo mudara.
Meses depois, no auge da campanha à reeleição de Dilma e dos esforços de arrecadação dos petistas, Faria conseguiu o impossível. No dia 10 de setembro, protocolou o pedido de dispensa da fiança do empréstimo da fábrica na Bahia. Uma semana depois, o pedido foi analisado – numa velocidade espantosa para os padrões de um banco tão lento e burocrático quanto o BNB. Num intervalo de pouco mais de 24 horas, o pedido passou por cinco instâncias do BNB e foi aprovado pelo Conselho de Administração do banco, segundo os documentos obtidos por ÉPOCA. Estava no papel: o BNB aceitara, em tempo recorde, abdicar de uma garantia 100% segura por outras mequetrefes, se comparadas à carta-fiança. De quebra, teve de reservar R$ 3,6 milhões no balanço – o tal “provisionamento” – para cobrir o mau negócio que fechara.
Alguns técnicos do banco não gostaram da solução encontrada. Para demonstrar insatisfação, deixaram claro que a dispensa da fiança não seria inócua para o BNB. Em um documento interno obtido por ÉPOCA, funcionários afirmaram: “O nível de risco atualmente corresponde a 8,75 (AA), quando considerada a fiança bancária. Quando considerada a garantia hipotecária do complexo industrial, passa a ser 6,05 (B)” (leia abaixo). Fica claro que a substituição da fiança só interessava mesmo a Faria. A decisão do BNB também contrariou frontalmente uma das principais cláusulas que permitiram a assinatura do contrato: “Outras instituições financeiras de primeira linha estarão comprometidas com o projeto durante o prazo de 11 anos, visto que a fiança que comporá a garantia da operação terá vigência por todo o período do financiamento”.
No dia 29 de setembro, apenas 12 dias após seu Grupo Petrópolis obter o impossível no BNB, Faria depositou R$ 5 milhões na conta da campanha de Dilma. Até o dia 3 de outubro, a campanha dela receberia outros R$ 12,5 milhões. No total, Faria doou R$ 17,5 milhões. Tornou-se, assim, o quarto maior doador da campanha da presidente. É aproximadamente esse valor que Faria gastaria com as fianças anuais dos dois empréstimos. O pedido para que o segundo empréstimo, o da fábrica em Pernambuco, também seja dispensado da carta-fiança será feito em breve. Segundo fontes na cúpula do BNB, está encaminhado para ser aprovado.
Procurado por ÉPOCA, o Grupo Petrópolis afirmou, por meio de nota, que a dispensa da fiança gerou economia para a empresa, mas não disse quanto. Afirmou ainda que a fiança foi substituída por outras garantias com “valores até maiores”. Ainda de acordo com a nota, Faria conhece Vaccari, mas negou ter pedido ajuda a ele ou a qualquer pessoa para que a fiança usada no empréstimo do BNB fosse dispensada. Disse, ainda, que todas as doações à campanha da presidente Dilma cumpriram as regras eleitorais. Também por meio de nota, Vaccari disse jamais ter tratado do interesse de qualquer empresa com o BNB. O presidente do BNB, Nelson de Souza, afirmou que a substituição da fiança está prevista nas regras do banco e que nunca esteve com o empresário Walter Faria. Disse, no entanto, que o empresário já esteve com dirigentes do banco para tratar assuntos do interesse dele.