O dia em que Dilma cuspiu no rosto de 370.000 médicos
brasileiros
Juliana Mynssen da Fonseca Cardoso
Há alguns meses eu fiz um plantão em que chorei. Não contei
à ninguém (é
nada fácil compartilhar isso numa mídia social). Eu,
cirurgiã-geral, "do trauma",
médica "chatinha", preceptora "bruxa",
que carrego no carro o manual da
equipe militar cirúrgica–americana que atendia no
Afeganistão, chorei.
Na frente da sala da sutura tinha um paciente idoso
internado. Numa cadeira.
Com o soro pendurado na parede num prego similiar aos que
prendemos
plantas (diga-se: samambaias). Ao seu lado, seu filho. Bem
vestido. Com fala
pausada, calmo e educado. Como eu. Como você. Como nós.
Perguntava pela possibilidade de internação do seu pai numa
maca, que
estava há mais de um dia na cadeira. Ia desmaiar. Esperou,
esperou, e toda
vez que abria a portinha da sutura ele estava lá. Esperando.
Como eu. Como
você. Como nós.
Teve um momento que ele desmoronou. Se ajoelhou no chão,
começou a
chorar, olhou para mim e disse "não é para mim, é para
o meu pai, uma maca".
Como eu faria. Como você. Como nós.
Pensei "meudeusdocéu, com todos que passam aqui, justo
eu... Nãoooo.....
Porque se chorar eu choro, se falar do seu pai eu choro, se
me der um desafio
vou brigar com 5 até tirá-lo daqui".
E saí, chorei, voltei, briguei e o coloquei numa maca
retirada da ala feminina.
Já levei meu pai para fazer exame no meu HU. O endoscopista
quando soube
que era meu pai, disse "por que não me falou, levava no
privado, Juliana!" Não
precisamos, acredito nas pessoas que trabalham comigo. Que
me ensinaram e
ainda ensinam. Confio. Meu irmão precisou e o levei lá.
Todos os nossos médicos são de hospitais públicos que
conhecemos, e, se
não os usamos mais, é porque as instituições públicas
carecem. Carecem e
padecem de leitos, aparelhos, materiais e medicamentos.
Uma vez fiz um risco cirúrgico e colhi sangue no meu
hospital universitário. No
consultório de um professor ele me pergunta: "e você
confia?".
"Se confio para os meus pacientes tenho que confiar
para mim."
Eu pratico a medicina. Ela pisa em mim alguns dias, me
machuca, tira o sono,
dá rugas, lágrimas, mas eu ainda acredito na medicina. Me
faz melhor.
Aprendo, cresço, me torna humana. Se tenho dívidas, pago-as
assim. Faço
porque acredito.
Nesses últimos dias de protestos nas ruas e nas mídias
brigamos por um país
melhor. Menos corrupto. Transparente. Menos populista. Com
mais qualidade.
Com mais macas. Com hospitais melhores, mais equipamentos e
que não
faltem medicamentos. Um SUS melhor.
Briguei pelo filho do paciente ajoelhado. Por todos os meus
pacientes. Por
mim. Por você. Por nós. O SUS é nosso.
Não tenho palavras para descrever o que penso da "Presidenta"
Dilma. (Uma
figura que se proclama "a presidenta" já não
merece minha atenção).
Mas hoje, por mim, por você, pelo meu paciente na cadeira,
eu a ouvi.
A ouvi dizendo que escutou "o povo democrático
brasileiro". Que escutou que
queremos educação, saúde e segurança de qualidades.
"Qualidade"... Ela
disse.
E disse que importará médicos para melhorar a saúde do
Brasil....
Para melhorar a qualidade....?
Sra "presidenta", eu sou uma médica de qualidade.
Meus pais são médicos de
qualidade. Meus professores são médicos de qualidade. Meus
amigos de
faculdade. Meus colegas de plantão. O médico brasileiro é de
qualidade.
Os seus hospitais é que não são. O seu SUS é que não tem
qualidade. O seu
governo é que não tem qualidade.
O dia em que a Sra "presidenta" abrir uma ficha
numa UPA, for internada num
Hospital Estadual, pegar um remédio na fila do SUS e falar
que isso é de
qualidade, aí conversaremos.
Não cuspa na minha cara, não pise no meu diploma. Não me
culpe da sua
incompetência.
Somos quase 400mil, não nos ofenda. Estou amanhã de plantão,
abra uma
ficha, eu te atendo. Não demora, não.
Não faltam médicos, mas não garanto que tenha onde sentar.
Afinal, a cadeira
é prioridade dos internados.
Hoje, eu chorei de novo.
Juliana Mynssen da Fonseca Cardoso é cirurgiã geral no
Hospital Estadual
Azevedo Lima, no Rio de Janeiro.
Dra. Juliana convida a presidente para um encontro naquele hospital. Para o senador, Dilma deveria não apenas dar atenção à carta, como atender ao convite.
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