Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Arnaldo Jabor
“São cinco horas da manhã e estou na
fila para comprar comida e, se tiver sorte, papel higiênico. Penso muito no
passado mais recentes de meu país tão quebrado hoje, país que sempre foi regido
pelo seu passado; hoje analiso-o do futuro. Em que ano estou? Minha lembrança
mais antiga jaz no deserto, quando o Califado Islâmico tomou conta do Oriente
Médio, chegando até as bordas de Israel-Palestina, já considerada ‘área
insolúvel’. Depois da bomba que o presidente Trump lançou no Paquistão — hoje
conhecido como Talebania, muita coisa aconteceu nesses anos loucos.
“Mas vou me ater às memórias do
Brasil.
“Aqui, passados muitos anos, lembro
ainda do calafrio que senti no dia em que Dilma voltou ao governo. Lembro-me de
seu olhar gelado de vingança, perdoada pelo Senado, graças à aquisição de três
senadores por dez milhões cada um.
“Lembro-me de Dilma proclamando na
ladeira do Planalto: ‘Vamos retomar a Nova Matriz econômica! Gasto público é
vida!’.
“Mantega já a esperava lá no alto,
vendo a equipe econômica do Temer se esgueirando pelos fundos. E aí foi aquele
carnaval bolivariano.
“O MST encheu a esplanada de
miseráveis erguendo enxadas, depois de terem arrasado a agroindústria, a CUT
convocou milhares dos 12 milhões de desempregados e, de ônibus e sanduíches de
mortadela, animou-os com a promessa de trabalho, protegidos pelos black blocs,
agora nomeados a ‘guarda revolucionária da Presidenta’. Acabou a insuportável
Lei de Responsabilidade Fiscal, voltaram pedaladas muito maiores, pedaladas
agora chamadas de ‘revolucionárias’, até que o real despencou face ao dólar,
sendo cotado a R$ 13,788. Aí, elementos desobedientes e, segundo o PT 2, da
‘direita neoliberal’, começaram a reclamar da fome, querendo fazer greves.
Muitos sem teto invadiram a sede da Petrobras para fazer suas moradias.
“Mas Dilma e seus assessores logo
conclamaram brilhantes intelectuais, professores e artistas para explicar ao
povo que seu sofrimento era ‘belo e corajoso’, porque eles estavam penando por
causa dos ricos e que um dia (sempre falavam ‘um dia’) o Brasil seria um
paraíso social. O povão, como sempre, não entendeu nada e continuou passando
fome, só que mais conformado, porque nossos intelectuais tinham explicado que
há uma ‘pureza doce na miséria’, que a dor dignifica e fortalece para as lutas
futuras. E proclamaram: — ‘é melhor um país pobre do que desigual. Que todos
sofram igualmente!’. Os miseráveis se sentiram importantes, porque sofriam em
nome do socialismo.
“Mas a nova crise, chamada por Dilma
de Crise 2, não dava refresco. A inflação cresceu com todos os seus demônios,
batendo a ‘bela marca’ de 1992, de 80% ao mês. Imediatamente, a Nova Matriz
Econômica 2 revigorou a inesquecível tradição do passado — a correção
monetária. E o Brasil reviveu os dias emocionantes com a volta do overnight. As
maquininhas de ‘tlec tlec’ para a remarcação encheram os supermercados (cada
vez mais vazios) com a doce melodia dos anos de ouro da inflação. Mas, segundo
o Governo da Presidenta — Parte 2, canalhas neoliberais e a mídia conservadora
diziam que a vaca ia para o brejo.
“A pressão foi grande, e os
assessores do Planalto notaram, preocupados, que Dilma começou a delirar,
falando compulsivamente que ‘ela não era vaca no brejo’, que ‘gasto público é
vida’, que a mandioca e os homens sapiens iam nos salvar, que ela iria saquear
(usou a palavra) o Tesouro acumulado pela ‘burguesia’ de direita no Estado para
financiar um grande consumo de geladeiras e fogões. A medida fascinou os pobres
que se acotovelaram em frente as vitrines de TVs e liquidificadores. Só que
ninguém podia mais comprar nada.
“Dilma engordou brutalmente — tinha
gastado dez vezes mais em comida para o Alvorada, numa compulsão compensatória.
“Mas a pressão ficou tão grande que
ela caiu em depressão profunda e foi internada numa clínica de sonoterapia,
onde dormiu até o fim do mandato, pois os médicos recomendaram que ela não
visse ‘a cagada que tinha aprontado de novo’.
“Lula sucedeu-lhe em 2018,
continuando em 2022, criando uma dinastia de si mesmo, reeleito em vários
mandatos, até 2034, quando ele já não falava mais e tinha sido mumificado num
carro de vidro que desfilava entre a multidão de fiéis ajoelhados. Quando se
iniciou a decomposição, seu corpo foi entronizado no Museu Bolívar, um palácio
de mármore vermelho desenhado por Oscar Niemeyer.
“A partir daí, tudo começou a
desmoronar. A própria ideia de ‘País’ ficou questionada porque, na realidade,
tínhamos virado um arquipélago de poucas ilhas de vida social, cercadas de
merda por todos os lados.
“Alguns chegaram a sugerir que o
Brasil fosse cortado em pedaços, ficando o ‘capitalismo escroto neoliberal’ em
São Paulo e o Nordeste com uma espécie de socialismo-feudal, uma mistura de
Renan (96) com o bolivariano ex-Maduro, devorado por milícias famintas em 2025.
“A corrupção diminuiu muito nessa
época, não pela operação Lava-Jato, mas porque não havia mais grana nenhuma no
Tesouro para roubar.
“Brasília ficou mais vazia. Como
abastecer aviões públicos e privados sem combustível?
“Poucos políticos vagavam pela Praça
dos Três Poderes abordando até transeuntes em busca de algum bom negócio.
Eduardo Cunha, 87, acusado do assassinato de Janot, foi morar em um ‘trust’ na
Suíça.
“Nessa fase, houve o Segundo Crash da
Bolsa de NY, entre nuvens de suicidas e filas de desempregados.
“Aqui foi uma surpresa. O Brasil afundou
mais ainda e nada aconteceu. Houve, claro, legiões de famintos atacando os
supermercados, mas logo ficou claro que a miséria é autorregulável. Muito
simples, explicaram os acadêmicos: a fome diminui a população, dado benéfico
para a incrível falta de comida, provocada pela decisão acertada do Governo de
jamais cortar gastos fiscais.
“As lembranças me emocionam por sua
dor e delícia. Sofro com o fim do país, mas sorrio com um prazer meio perverso,
rememorando os estrambóticos delírios da política porra-louca. A fila andou.
Consegui entrar no supermercado com minha carteira de consumidor na mão.
Mostrei minhas digitais. Numa prateleira, ainda há uma caixa de biscoitos.
Corro, mas um cara chegou antes e levou. Pergunto ao agente militar do
supermercado onde é que está o papel higiênico.
“Acabou, disse ele. E, ao ver meu
suspiro de desconsolo, riu irônico e acrescentou: ‘Limpa com o dedo!...’”.
Arnaldo Jabor é Cineasta e Jornalista. Originalmente publicado em O Globo em 14 de junho de 2016.
fonte: http://www.alertatotal.net/2016/06/dilma-ii-volta.html
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