Sim, vivemos sob o socialismo
Não
há nada mais prático do que uma boa teoria.
Por isso, proponho-me a explicar em termos teóricos o que é o socialismo
e por que ele não apenas é um erro intelectual, como também é uma
impossibilidade científica. Mostrarei
por que ele se desmoronou — ao menos o socialismo real — e por que o
socialismo que segue existindo na forma de intervencionismo econômico nos
países ocidentais é o principal culpado pelas tensões e conflitos de que padece
o mundo atual.
Ainda
estamos vivendo em um mundo essencialmente socialista, não obstante a queda do
Muro de Berlim; e continuamos tolerando os efeitos que, segundo a teoria, são
próprios da intervenção do estado sobre a vida social.
Para
definir o socialismo, é necessário antes entendermos o conceito de "função
empresarial". Os teóricos da economia dizem
que a função empresarial é uma capacidade inata do ser humano. Não estamos nos referindo aqui ao empresário
típico que leva adiante um empreendimento.
Estamos nos referindo, isso sim, à capacidade inata que todo ser humano tem
de descobrir, criar, tomar conhecimento das oportunidades de lucro que surgem
ao seu redor e atuar de modo a se aproveitar das mesmas.
Com efeito, etimologicamente, a palavra 'empresário'
evoca o descobridor, alguém que percebe algo e aproveita a oportunidade. Em termos mais figurativos, seria a lâmpada
que se acende.
A
função empresarial é a mais essencial das capacidades do ser humano. Essa capacidade de criar e de descobrir
coisas é o que, por natureza, mais nos distingue dos animais. Neste sentido geral, o ser humano, mais do
que um homo sapiens é um homo empresario.
Quem
seria, portanto, um empresário? Não se trata apenas de Henry Ford ou
de Bill
Gates, que sem dúvida alguma são grandes empresários no âmbito comercial
e
econômico. Um empresário é toda e
qualquer pessoa que tenha uma visão criativa, uma visão revolucionária.
Madre Teresa de Calcutá, por exemplo. Sua missão era ajudar aos mais
necessitados,
e ela buscava fazer isso de forma criativa, unindo voluntários e
canalizando os
desejos de todos para o seu objetivo.
Por isso, Teresa de Calcutá foi um exemplo paradigmático de empresário.
Portanto,
entendamos a função empresarial como sendo a mais íntima característica de
nossa natureza como seres humanos, a característica que explica o surgimento da
sociedade e o seu desenvolvimento como uma extremamente complicada rede de
interações. A sociedade é formada por
inúmeras relações de interação e troca entre indivíduos, relações estas que são
empreendidas porque, de alguma forma, imaginamos que estaremos melhor após
elas. Todas estas relações são
impulsionadas por nosso espírito empresarial.
Todo
ato empresarial produz uma sequência de três etapas.
A primeira consiste na criação da informação:
quando um empresário descobre ou cria uma ideia nova; quando ele gera em sua
mente uma informação que antes não existia.
Para colocar essa descoberta em prática, ele parte para a segunda etapa,
que é quando ele combina recursos para satisfazer necessidades. Se, de um lado, ele percebe que há um recurso
barato e mal aproveitado, e, do outro, ele descobre que há demandas que podem
ser satisfeitas com este recurso, ele irá atuar de modo a coordenar este "desarranjo".
Ele irá comprar barato o recurso, utilizá-lo, transformá-lo, e vendê-lo a um
preço maior, satisfazendo assim a demanda que ele havia percebido.
Desta forma, a informação é transmitida a
todos, o que nos leva à terceira e última etapa, que é quando os agentes
econômicos, atuando de maneira descoordenada, observam, aprendem e descobrem
que devem conservar e economizar melhor um determinado recurso porque alguém o
está demandando.
Estes
são os três planos que completam a sequência: criação de informação,
transmissão de informação e, o mais importante, o efeito de coordenação gerado
pelas duas etapas anteriores.
Desde o
momento em que acordamos e nos levantamos da cama até o momento em que voltamos
a dormir, disciplinamos nosso comportamento em função das mais distintas
necessidades, em função das necessidades de pessoas que nem sequer conhecemos;
e fazemos isso por iniciativa própria porque, seguindo nosso próprio interesse
empresarial, sabemos que assim saímos ganhando.
É importante entendermos tudo isso porque, em contraste, vejamos agora o
que é o socialismo.
O
socialismo deve ser definido como sendo "todo e qualquer sistema de agressão
institucional e sistemática contra o livre exercício da função
empresarial". O socialismo consiste em
um sistema de intervenção que se impõe pela força, utilizando todos os meios
coercitivos do estado.
O socialismo
poderá apresentar determinados objetivos como sendo bons, mas terá de impor
estes objetivos supostamente bons por meio de intervenções coercivas que provocarão
distúrbios neste processo de cooperação social protagonizado pelos
empresários. Sendo assim — e essa é sua
principal característica —, o socialismo funciona por meio da coerção. Esta definição é muito importante porque os
socialistas sempre querem ocultar sua face coerciva, a qual é a essência mais
distintiva de seu sistema.
A
coerção consiste em utilizar a violência para obrigar alguém a fazer algo. De um lado temos a coerção do criminoso de
rua que assalta um indivíduo qualquer; de outro temos a coerção do estado, que
é a coerção que caracteriza o socialismo.
Quando a coerção é aleatória, não sistemática, o mercado tem, na medida
do possível, seus próprios mecanismos para definir direitos de propriedade e
defender-se da criminalidade.
Porém, se
a coerção é sistemática e advém institucionalmente de um estado que detém todos
os instrumentos do poder, a possibilidade de nos defendermos destes
instrumentos e evitá-los é muito reduzida.
É neste ponto que o socialismo manifesta sua realidade em toda a sua
crueza.
O
socialismo não deve ser definido unicamente em termos de propriedade pública ou
privada dos meios de produção. Isso é um
arcaísmo. A essência do socialismo é a
coerção, a coerção institucional oriunda do estado, por meio da qual se pretende
que um órgão planejador se encarregue de todas as tarefas supostamente
necessárias para se coordenar toda uma sociedade.
A responsabilidade é retirada à força dos
indivíduos — que são naturalmente os únicos responsáveis por sua função
empresarial, e que almejam seus objetivos e querem alcançá-los utilizando os
meios mais adequados para tal — e repassada a um órgão planejador que, "lá de
cima", pretende impor por meio da coerção sua visão específica de mundo e seus
objetivos particulares.
[N. do E.: no Brasil, pense nas agências reguladoras
que cartelizam todo o mercado e impedem a livre iniciativa e a livre
concorrência, em todos os ministérios que impõem a agenda de seus
integrantes sobre toda a população brasileira, em toda a burocracia que
atrapalha o empreendedorismo dos pequenos, e em toda a carga tributária
que impede o surgimento de novas empresas].
Nesta definição
de socialismo, vale enfatizar que é irrelevante se este órgão planejador foi ou
não eleito democraticamente. O teorema
da impossibilidade do socialismo se mantém intacto, sem nenhuma modificação,
independentemente de ser democrática ou não a origem do órgão planejador que
quer impor à força a coordenação de toda a sociedade.
Definido
o socialismo desta maneira, expliquemos então por que ele é um erro
intelectual.
O
socialismo é um erro intelectual porque é impossível que o órgão planejador
encarregado de exercer a coerção para coordenar a sociedade obtenha todas as
informações de que necessita para fornecer um conteúdo coordenador às suas
ordens. Este é o grande paradoxo do
socialismo, e o seu maior problema. O
planejador da economia necessita receber um fluxo ininterrupto e crescente de
informação, de conhecimento e de dados para que seu impacto coercivo — a
organização da sociedade — tenha algum êxito.
Mas é obviamente impossível uma mente ou mesmo várias mentes obterem e
processarem todas as informações que estão dispersas na economia. As interações diárias entre milhões de
indivíduos produzem uma multiplicidade de informações que são impossíveis de
serem apreendidas e processadas por apenas um seleto grupo de seres humanos.
Os
teóricos da Escola Austríaca de Economia, Mises e Hayek, elaboraram quatro
argumentos básicos no debate que mantiveram durante a primeira metade do século
XX contra os teóricos da economia neoclássica, os quais nunca foram capazes de
entender o problema inerente ao socialismo.
E por que não foram capazes de entendê-lo? Pelo seguinte motivo: eles acreditavam que a
economia funcionava exatamente como nos livros-textos de faculdade. Mas o que os livros-textos ensinam em relação
ao funcionamento da economia de mercado é radicalmente falso e fictício. Tais manuais baseiam suas explicações sobre o
mercado em termos matemáticos que supõem um ajuste perfeito. É como se o mercado fosse uma espécie de
computador que ajusta de maneira automática e perfeita os desejos dos consumidores
à ação dos produtores. O modelo ideal
dos manuais é o da concorrência
perfeita, descrito pelo sistema de equações simultâneas de Walras.
Quando
era universitário, minha primeira aula de economia foi com um professor que
começou sua explanação com a seguinte e espantosa frase: "Suponhamos que todas
as informações sejam conhecidas". E logo
em seguida ele se pôs a encher o quadro-negro com funções, curvas e fórmulas. Esta é exatamente a hipótese da qual partem
os neoclássicos: todas as informações são conhecidas e nada se altera; tudo é
estático. Mas esta hipótese é
radicalmente irreal. Ela vai contra a
característica mais típica do mercado: a informação nunca é conhecida por todos;
ela está dispersa pela economia. Ela não
é um dado constante que está ali para ser consultado a qualquer momento. O conhecimento dos dados surge continuamente
em decorrência da atividade criativa dos empresários: novos fins são almejados,
novos meios são criados e utilizados.
Logo, qualquer teoria econômica construída a partir deste pressuposto irreal
está fatalmente errada.
Os
economistas neoclássicos pensaram que o socialismo era possível porque
supuseram que todos os dados necessários para elaborar o sistema de equações
simultâneas de Walras e encontrar sua solução eram "conhecidos". Não foram capazes de apreciar o que ocorria neste
mundo que tinham de investigar cientificamente; por conseguinte, não
conseguiram entender o que realmente se passava.
Somente
a Escola Austríaca seguiu um paradigma distinto. Ela nunca supôs que as informações já estavam
dadas e eram conhecidas por todos. Ela
sempre considerou que o processo econômico era impulsionado por empresários que
continuamente incorrem em transações e descobrem novas informações. Somente ela foi capaz de entender e explicar
que o socialismo era um erro intelectual.
Ela desenvolveu seu argumento utilizando quatro enunciados: dois podem
ser considerados "estáticos" e os outros dois podem ser considerados
"dinâmicos".
Em
primeiro lugar, a Escola Austríaca afirma, como já dito, ser impossível o órgão
planejador coletar e utilizar corretamente todas as informações de que
necessita para imprimir um conteúdo coordenador às suas ordens. O volume de informações que os seres humanos
manejam e com as quais lidam diariamente é imenso, de modo que é impossível
gerir o que sete bilhões de seres humanos têm na cabeça. Embora os neoclássicos não tenham sequer
conseguido entender este argumento, ele é o mais fraco e o menos
importante. Ao fim e ao cabo, nos dias
de hoje, com toda a capacidade informática existente, é um pouco mais fácil
lidar com volumes imensos de informação.
O
segundo argumento é muito mais profundo e contundente. A informação com
que lida o mercado não é
objetiva; não é como a informação que se encontra impressa em um
catálogo. A informação empresarial possui uma natureza
radicalmente distinta; ela é uma informação subjetiva, e não objetiva.
Ela é tácita, por assim dizer. Ela é do tipo "sabemos algo, temos a
técnica,
a prática e o conhecimento, mas não sabemos no que tudo isso consiste
detalhadamente."
Explicando de outra
forma: é como a informação necessária para andar de bicicleta. É como se alguém quisesse aprender a andar de
bicicleta estudando as fórmulas físicas e matemáticas que expressam o
equilíbrio que mantém o ciclista enquanto ele pedala. O conhecimento necessário para saber andar de
bicicleta não é adquirido desta forma, mas sim mediante um processo prático de
aprendizagem, normalmente bem acidentado, que finalmente permite entender como
se equilibra sobre uma bicicleta, além de detalhes fundamentais, como o de que,
ao fazermos as curvas, temos de nos inclinar para não cairmos. É bem provável que Miguel Indurain
desconheça
os detalhes das leis da física que o permitiram vencer o Tour de France
por cinco anos consecutivos, mas ele indubitavelmente possui o
conhecimento de como se anda em uma
bicicleta.
A
informação implícita não pode ser moldada de maneira formalizada e objetiva;
tampouco pode ser transmitida corretamente a um órgão planejador. Só é possível transmitir a um órgão
planejador — de modo que este assimile e imponha uma coerção, dando um
conteúdo coordenador às suas ordens — uma informação unívoca que não dê
brechas a mal entendidos. Porém, a
esmagadora maioria das informações das quais dependemos para sermos bem-sucedidos
em nossas vidas não é objetiva; não é informação de catálogo. É informação subjetiva e tácita.
Mas
estes dois argumentos — que as informações são extremamente volumosas e que
possuem um caráter subjetivo — não bastam.
Existem outros dois, de caráter dinâmico, que são ainda mais
contundentes e cuja implicação inevitável é a impossibilidade do socialismo.
Nós
seres humanos somos dotados de uma inata capacidade criativa. Continuamente descobrimos coisas "novas",
almejamos objetivos "novos", e escolhemos meios "novos" para alcançá-los. É impossível transmitir a um órgão planejador
a informação ou o conhecimento que ainda não foi "criado" pelos
empresários. O órgão planejador pode se empenhar
o quanto quiser em construir um "nirvana social" por meio de uma publicação
diária de decretos e da imposição da força.
Mas, para fazer isso — ou seja, para se alcançar o "nirvana social" —
ele tem de saber exatamente o que ocorrerá amanhã. E o que vai ocorrer amanhã dependerá de uma
informação empresarial que ainda não foi criada hoje, e que não pode ser
transmitida ainda hoje para que nossos governantes nos coordenem eficientemente
amanhã. Este é o paradoxo do socialismo,
a terceira razão.
Mas
isso ainda não é tudo. Existe um quarto
argumento que é definitivo. A própria
natureza do socialismo — que, como dito, se baseia na coerção, no impacto
coercivo sobre o corpo social ou a sociedade civil — bloqueia, dificulta ou
impossibilita a criação empresarial de informação, que é precisamente aquilo de
que necessita o governante para dar um conteúdo coordenador às suas ordens.
Esta
é a demonstração em termos científicos do motivo de o socialismo ser
teoricamente impossível. É impossível o
órgão planejador socialista coletar, apreender e colocar em prática todas as
informações de que necessita para imprimir um conteúdo coordenador aos seus
decretos. Esta é uma análise puramente
objetiva e científica.
Não é necessário
pensar que o problema do socialismo está no fato de que "aqueles que estão no
comando são maus". Nem mesmo anjos,
santos ou seres humanos genuinamente bondosos, com as melhores intenções e com
os melhores conhecimentos, poderiam organizar uma sociedade de acordo com o
esquema coercivo socialista. Ela seria
convertida em um inferno, já que, dada a
natureza do ser humano, é impossível alcançar o objetivo ou o ideal
socialista.
Todas
estas características do socialismo têm consequências que podemos identificar
em nossa realidade cotidiana. A primeira
é seu poder de encanto. Em nossa
natureza mais íntima, sempre encontramos o risco de ceder ao socialismo porque
seu ideal nos tenta, porque o ser humano sempre tende a se rebelar contra sua
natureza. Viver em um mundo cujo futuro
é incerto é algo que nos inquieta, e a possibilidade de controlar este futuro,
de erradicar a incerteza, nos atrai.
Em
seu livro A
Arrogância Fatal, Hayek diz que, na realidade, o socialismo é a
manifestação social, política e econômica do pecado original do ser humano, que
é a arrogância. O ser humano sempre teve
o devaneio de querer ser Deus — isto é, onisciente. Por isso, sempre, geração após geração, temos
de estar em guarda contra o socialismo, continuamente vigilantes, e entender o
fato de que nossa natureza é criativa, do tipo empresarial.
O
socialismo não é uma simples questão de siglas, abreviações, sindicatos ou
partidos políticos em determinados contextos históricos. O socialismo é uma ideia que está e sempre
estará se infiltrando de maneira insidiosa em famílias, comunidades, bairros, igrejas,
empresas, movimentos, partidos políticos de todas as ideologias etc. É necessário lutar continuamente contra a
tentação do estatismo porque ele representa o perigo mais original que há
dentro dos seres humanos, nossa maior tentação: crer que somos Deus.
O socialista acredita ser genuinamente capaz
de superar o problema da impossibilidade da coleta, da apreensão e da
utilização de informações dispersas, problema esse que desacredita totalmente a
essência do sistema que ele defende. Por
isso, o socialismo sempre decorre do pecado da soberba intelectual. Por trás de todo socialista há um arrogante,
um intelectual soberbo. E isso é algo
fácil de constatarmos ao nosso redor.
O
socialismo não é somente um erro intelectual.
É também uma força verdadeiramente antissocial, pois sua mais íntima
característica consiste em violentar, em maior ou menor escala, a liberdade
empresarial dos seres humanos em seu sentido criativo e coordenador. E, como é exatamente isso o que distingue os
seres humanos dos outros seres vivos, o socialismo é um sistema social
antinatural, contrário a tudo o que o ser humano é e aspira a ser.
Jesús Huerta de Soto ,
professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o
principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e
professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo
libertário ao redor do mundo. Ele é o autor de A Escola Austríaca: Mercado e Criatividade Empresarial, Socialismo, cálculo econômico e função empresarial e da monumental obra Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos.
fonte: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1430
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