Ensaio escrito para a revista Dicta &
Contradicta. Edição de Joel Pinheiro da Fonseca.
Rodrigo Constantino
Para falar sobre filosofia política, o primeiro problema que surge é a
definição dos rótulos. Eles são úteis na vida, não resta dúvida, pois ajudam a
simplificar conceitos complexos e a estreitar grupos de pensamento com base em
semelhanças e divergências. Mas podem ser perigosos, justamente por seu
simplismo. Como encaixar em uma única palavra tantos valores e princípios,
tantas crenças?
Dito isso, não terei como fugir dos rótulos em um ensaio sobre
conservadorismo e liberalismo. O que entendo por conservadorismo? Em primeiro
lugar, talvez seja melhor dizer o que não será alvo de análise
neste ensaio: o neoconservadorismo do Partido Republicano nos Estados Unidos,
tão bem representado pelo ex-presidente George W. Bush. Sua visão messiânica de
exportar, por meio de armas, a democracia para o mundo não combina com o conservadorismo
tradicional. Tampouco trataremos de um conservadorismo verde e amarelo, até
porque faltariam representantes legítimos desse pensamento no Brasil moderno.
Inclusive considero estes dois ícones da “direita” – os imperialistas
messiânicos e os meros reacionários – como culpados pela má reputação do
conservadorismo. Se seus representantes são Bush e Bolsonaro, então não há
muito de admirável nessa linha de pensamento político. O anticomunismo é muito
pouco para torná-la respeitável.
O conservadorismo aqui abordado é aquele que ganhou corpo teórico a
partir de Edmund Burke e suas reflexões sobre a Revolução Francesa. Outros
vieram depois acrescentando suas próprias visões, mas sem transfigurar os
pilares essenciais traçados por Burke. Tocqueville, John Adams, Michael
Oakeshott, Russell Kirk, Roger Scruton e tantos outros contribuíram para a
preservação e o avanço de suas principais características.
E quais seriam elas? Tentemos definir os principais pontos do
conservadorismo; tarefa ingrata, mas necessária. Com relutância, enfrentarei o
desafio, sabendo de antemão que pecarei pelo simplismo. Pedirei ajuda a Russell
Kirk, que se debruçou sobre o assunto em The Conservative Mind.
O conservadorismo não é um dogma imutável ou fixo, e se adapta ao tempo
sem trair suas convicções. Em sua essência, porém, representa a tentativa de
preservar o que é familiar, e daí decorre o respeito pelas tradições
assimiladas e testadas pela sociedade ao longo do tempo, pela sabedoria dos
antepassados. Alguns pilares costumam estar presentes em todo pensamento
conservador. São eles: 1) A crença de que há uma intenção divina que governa a
sociedade e a consciência individual, criando um elo eterno que liga os vivos e
os mortos; 2) afeição pela enorme variedade e mistério presentes na vida, ao
contrário da visão mais uniforme e limitada dos sistemas radicais; 3) convicção
de que a sociedade civil necessita de ordem e classes, de lideranças naturais
que, uma vez abolidas, deixarão um vácuo a ser ocupado por ditadores; 4) noção
de que propriedade e liberdade estão conectadas de forma inseparável; 5)
descrença em modelos racionalistas que ignoram o fato de que os homens são
governados mais pelas emoções que pela razão; 6) reconhecimento de que reforma
e inovação revolucionária não são a mesma coisa, sendo esta normalmente
arriscada demais para a manutenção da sociedade.
Em minha interpretação da leitura dos textos conservadores, eis o que
ficou de mais relevante: uma cautela contra tudo que é extremista e utópico; a
preferência por reformas graduais em vez de saltos revolucionários; uma
abordagem humilde com base na falibilidade de nossa razão; um foco nas virtudes
atemporais desenvolvidas por nossos ancestrais; a valorização da cultura e da
família tradicional; a defesa de uma aristocracia natural; profunda
desconfiança da democracia igualitária; uma visão trágica do ser humano, cuja
evolução moral não acompanha a material; um realismo ao lidar com a política, a
arte do possível; e o respeito pela ordem social contra o risco de anomia.
Desenvolverei esses pontos a seguir.
Ceticismo vs. fanatismo
Comecemos pela cautela contra radicalismos. Talvez esta seja uma das
mais importantes características de um típico conservador, e sem dúvida a que
mais me atrai. Todo conservador é cético por natureza e experiência. Ele
compreende que a vida em sociedade é por demais complexa para ser enquadrada em
modelos paridos em uma Torre de Marfim. O conservador rejeita abstrações, por
desconfiar de sua viabilidade, porque estas tendem a uniformizar de forma
centralizada os comportamentos para que o projeto político possa ser
construído. Ele jamais irá abraçar movimentos revolucionários, que têm a
pretensão de criar um “novo mundo” a partir de uma tábula rasa, descartando
todo o estoque de conhecimento existente.
Há em todo conservador uma boa dose de respeito pelo árduo processo de
tentativa e erro ao longo dos tempos, que serviu para moldar instituições úteis
a nossa sobrevivência. E o mais importante: tais instituições nem sempre podem
ser perfeitamente compreendidas pela nossa razão. O liberal Friedrich Hayek
tinha postura semelhante, apesar de não se considerar conservador. Mas sua
visão era tão parecida com o conservadorismo em alguns aspectos que ele teve
que escrever um texto explicando porque não era um deles.
Hayek, de fato, tinha muitos pontos de convergência com o
conservadorismo. Ele desconfiava do racionalismo cartesiano, e achava que a
própria razão poderia nos mostrar seus limites, demandando maior humildade
frente à complexidade da vida social. Chegou a cunhar a expressão “arrogância
fatal” para se referir a esta pretensão humana de desenhar modelos racionais
perfeitos e justos de sociedade. Hayek era contra o “abuso da razão”. Seguindo
a idéia de Vico, Mandeville e dos iluministas escoceses, acreditava em uma
ordem espontânea, advinda de consequências não intencionais dos agentes. Sua
maior divergência com os conservadores era no que diz respeito ao otimismo.
Para Hayek, faltava aos conservadores a coragem de aceitar as mudanças não
programadas pelas quais novas conquistas humanas irão surgir.
No aspecto de nosso interesse aqui, Hayek sem dúvida estava do lado
conservador. Curiosamente, mesmo desconfiando da razão e respeitando o estoque
de conhecimento acumulado, Hayek chegou a defender uma postura mais ousada dos
liberais. Escreveu que era preciso transformar o liberalismo em uma empreitada
radical e até utópica, uma aventura intelectual. Ironicamente, não viveu o
suficiente para ver os seguidores modernos de Rothbard, que levaram seu
conselho ao extremo, acusando-lhe de “socialista”.
O fanatismo dos seguidores de Rothbard foi um dos fatores que me
afastaram da visão libertária radical. Jovens imbuídos de uma crença
intransigente no princípio “absoluto” da não-agressão acabaram por criar uma
seita fechada, intolerante com qualquer divergência. Seguros da descoberta
dessa “pedra filosofal”, reduzem a questão ética a uma máxima que uma criança
compreenderia. Pensam que, com ela, respondem todos os complexos problemas
sociais. Juram falar em nome da Razão contra os alienados (todos que discordam).
Acabam adotando postura incompatível com o liberalismo plural e humilde que
defendo. Assim como Oscar Wilde, “não sou jovem o suficiente para saber
tudo”.
Conservadores dão mais ênfase à tradição que ao racionalismo dogmático.
A civilização não é herdada biologicamente; ela precisa ser aprendida e
conquistada por cada nova geração, inclusive por meio de ideias e valores
pré-concebidos (ninguém teria como submeter tudo ao crivo de
sua razão). Se a transmissão fosse interrompida por um século, seríamos
selvagens novamente. O homem não cria, apenas com base em sua razão, os pilares
que sustentam a civilização. Ela é o acúmulo de um processo ininterrupto e que
pode ser desfeito a qualquer momento.
Uma das críticas comuns que os racionalistas fazem a esta postura é
ilustrada pela história dos macacos enjaulados. Conta-se que cientistas
colocaram cinco macacos na jaula, com uma escada que dava acesso a um cacho de
bananas. Assim que um macaco tentava subir a escada, todos recebiam uma ducha
de água fria. Quando um deles se aventurava em direção à escada, os demais o
espancavam, receosos do castigo geral. Trocaram então um dos macacos, e o
novato rapidamente tentou subir a escada, sendo logo espancado pelos outros
quatro.
Os cientistas foram então trocando os macacos antigos um a um, e cada
novo macaco que tentava pegar o cacho de bananas era impedido pelos outros,
inclusive pelos que não estavam no começo e nunca tinham levado a ducha. Ao fim
do processo, os cinco macacos presentes na jaula eram todos novatos, ou seja,
nenhum deles estivera presente quando a ducha fria impediu o acesso ao prêmio.
Ainda assim, quando algum recém-chegado se dirigia à escada, eles o impediam.
Se alguém pudesse perguntar a estes macacos porque batiam no novato, provavelmente
responderiam: “Não sei, as coisas sempre foram assim por aqui”.
A história é interessante; mas serve para ambos os lados. Sim, é verdade
que muitas vezes seguimos tradições somente porque nossos pais faziam assim, e
antes deles seus pais também. Só que isso não quer dizer que a tradição seja
inútil, ou que possamos julgá-la racionalmente. Basta substituir o prêmio das
bananas no exemplo por uma armadilha que detona uma explosão nuclear, para
concluir que é positivo o fato de nenhum macaco deixar outro chegar ao topo da
escada, ainda que não saiba exatamente o motivo de sua ação.
Nesse caso, seria temerário permitir o acesso a qualquer macaco, e a
tradição teria uma função fundamental na preservação daquela comunidade. O
conservador, portanto, não precisa defender cegamente as tradições, ou ser
avesso a qualquer mudança. Ele adota uma postura cautelosa. Defende uma
abordagem gradual, repleta de cuidados e precauções. Não abraça a mudança pela
mudança em si. Contra o excesso de otimismo dos aventureiros, alerta para os
riscos envolvidos.
Conta Edmund Burke em suas reflexões: "Não estamos restritos à
alternativa de destruir completamente as instituições ou de deixá-las subsistir
sem nenhuma reforma. [...] É-me impossível compreender como certas pessoas são
tão pretensiosas, a ponto de considerarem um país como se fosse uma tábula rasa
onde pudessem escrever aquilo que melhor lhes convêm. No plano meramente
teórico é concebível que se deseje que a sociedade tal qual existe fosse
estruturada de uma maneira totalmente diferente, mas um bom patriota e um
verdadeiro político procura tirar o melhor partido possível daquilo que existe
de material na sua sociedade".
O sistema monárquico dos Bourbon precisava de reformas drásticas; mas
será que a revolução jacobina traria o paraíso pregado? Não deixa de ser
curioso o fato de que Thomas Paine, autor de The Age of Reason e Common
Sense, tenha se empolgado tanto com esse movimento revolucionário que tinha
tão pouco de racional e nada de bom senso. Por sorte, a Revolução Americana, ao
contrário da Francesa, contava com importantes figuras mais pessimistas, como
John Adams, para contrapor o otimismo radical de Paine e Jefferson.
Isso nos remete ao outro ponto de divergência entre liberais radicais e
conservadores: estes são, via de regra, mais pessimistas. Para Rothbard, por
exemplo, a “atitude adequada ao libertário é a de inextinguível otimismo quanto
aos resultados finais”, enquanto o “erro do pessimismo é o primeiro passo
descendente na escorregadia ladeira que leva ao conservadorismo”. Mas será que
o pessimismo (ou realismo, diriam alguns) é mesmo um erro?
Em The Uses of Pessmism, Roger Scruton defende que doses de
pessimismo são cruciais para se evitar catástrofes. Segundo ele, pessoas
escrupulosas misturam um pouco de pessimismo a suas esperanças, reconhecendo
que a vida possui limites, não apenas obstáculos. Ele vai além, e afirma que há
uma forma de vício na irrealidade que cria uma das formas mais destrutivas de
otimismo: o desejo de substituir a realidade por um sistema de ilusões.
Tom Wolfe sintetizou ironicamente a questão quando disse que um
conservador é um liberal que foi assaltado. Sonhar é bom, até indispensável
para o progresso. Adotar uma postura mais otimista diante da vida é parte
essencial dos empreendimentos que mudam o mundo para melhor. Mas o sonho
impossível, otimista em demasia, pode ser fatal. Quando se diz que não há
limites intransponíveis, que a vida não é feita de trade-offs, mas
apenas de obstáculos que precisam ser superados, se está a um passo da utopia.
Essa é outra característica dos conservadores: uma profunda ojeriza ao
pensamento utópico, à crença de que os males do mundo podem ser extintos. O
pensamento utópico é redentor, oferece uma visão de completude, um ponto de
chegada, o “fim da história”. Utopias são visões teleológicas que aplacam a
angústia de uma vida sem sentido ou destino. O utópico não aceita restrições e
imperfeições; ele quer uma “solução”. Tampouco aceita que valores podem viver
em conflito insolúvel, sem uma resposta “certa” e única.
Modelos utópicos desembocam em sistemas fechados, prontos, acabados, e
sempre intolerantes. Como o utópico sequer reconhece que podem existir valores
incomensuráveis, ele tende ao fanatismo, pois “sabe” o que é certo ou justo em todos
os casos. Os sábios carregam muitas dúvidas, enquanto os tolos e fanáticos
estão sempre certos de si, embora suas utopias não possam se concretizar, coisa
que, no fundo, eles sabem. É por isso que se negam a descrever em detalhes e de
forma crítica o que exatamente têm em mente. As utopias acabam empacotadas de
forma vaga, mesmo quando têm roupagem científica. Essa meta inalcançável serve
como poderosa arma para negar o que é real. A utopia é uma condenação abstrata
de tudo que nos cerca, e justifica a postura intransigente e violenta do
utópico.
O utópico é, em todos os sentidos, o avesso do conservador. Ele não
aceita contemporização alguma, não alimenta um saudável ceticismo quanto às
“soluções” pregadas, não tolera divergências, não respeita as experiências
históricas, não convive com as restrições impostas pela vida em sociedade, não
encara a possibilidade de sua “receita mágica” levar a um resultado terrível.
Como mecanismo de defesa, monopoliza os fins nobres e rejeita qualquer
experimento concreto como derivado de sua utopia. Para tanto, ele teria que
reconhecer suas imperfeições.
O Papel da religião
Muitos conservadores atribuem relevância gigantesca à religião como
instrumento da preservação dos valores morais. As religiões oferecem, além
disso, uma visão redentora pós-morte, o que ajudaria a suportar as angústias da
vida. Retire-se isso das pessoas, especialmente das massas, e alguma coisa será
colocada em seu lugar. EmTempos Modernos, Paul Johnson considera que o
colapso do impulso religioso deixou um vácuo de grandes proporções. Ele diz: “A
história dos tempos modernos é, em grande parte, a história de como aquele
vácuo foi preenchido”. No lugar da crença religiosa, haveria a ideologia
secular. As utopias seriam, desta forma, substitutos das religiões. A grande
diferença é que a seita ideológica promete um paraíso terrestre, o que é ainda
mais perigoso.
Confesso que este é um tema que gera muitas dúvidas em mim. Até que
ponto as pessoas em geral necessitam das religiões para preencher este vácuo,
evitando assim o risco de colocarem em seu lugar seitas seculares ainda mais
perigosas? Em outras palavras: até que ponto a “morte de Deus” não abriu espaço
para o nascimento do “Deus Estado” e, com ele, dos totalitarismos modernos? Não
tenho a pretensão de saber a resposta, mas reconheço que há aqui uma importante
divergência entre liberais e conservadores. Se estes afirmam a religião como
garantidora do tecido social, aqueles preferem a defesa secular das liberdades.
Há conservadores seculares, como Oakeshott. Mas talvez seja um ponto
fraco do conservadorismo moderno esta enorme dependência da religião. Talvez a
filosofia, as artes e a literatura possam substituir a religião neste encanto
pelo mistério do universo, nesta contemplação pelo desconhecido, eterno e
indizível. Mas talvez os conservadores, apelando para o argumento utilitarista
da fé, tenham um ponto quando alegam que, sem o freio religioso, as massas
demandarão algum outro “Pai” em seu lugar. As rotas de fuga alternativas e mais
sofisticadas talvez sejam privilégio de uma minoria esclarecida. Sei que é uma
visão elitista, mas eis outro aspecto que alguns liberais clássicos e
conservadores compartilham: a existência de uma aristocracia natural que
carrega o mundo nas costas.
Elite e massa
A multidão conta com a vantagem numérica. Nas massas, a sensação
predominante é a de ser “como todo mundo”, e não há angústia nisso; ao
contrário, sente-se bem por ser idêntico aos demais. A característica moderna,
apontada em A Rebelião das Massas por Ortega y Gasset, é que
esta “alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da
vulgaridade e o impõe em toda parte”. A hiperdemocracia criou o império das
massas, que precisa destruir o diferente, o melhor.
De gustibus non est disputandum. Esta, que é uma máxima ao agrado de
muitos liberais, seria a nova regra geral. É verdade que, se gosto não se
discute, há ao menos um apelo à tolerância, tão cara aos liberais. Só que
existe outro lado da moeda: a crença inabalável nas preferências subjetivas
acabou produzindo um excessivo relativismo. A música clássica e o funk das
favelas, os quadros de Caravaggio ou o tubarão de Damien Hirst, Dostoievski ou
Dan Brown, tudo simples questão de gosto. E o “melhor” será julgado pela
maioria. Vox populi, Vox Dei.
Os conservadores demonstram enorme desconforto diante deste cenário.
Eles entendem que a democracia não é critério estético. E o mesmo vale para a
política. Por isso conservadores costumam desconfiar das escolhas democráticas,
cientes de que não serão os melhores que chegarão ao poder, e sim os mais
populares, ou seja, os demagogos. Esta desconfiança com a democracia não é
sinônimo de defesa de regimes autoritários. Muitos liberais, como Ludwig von
Mises e Karl Popper, reconheceram que a principal vantagem da democracia não é
o resultado ótimo de sua escolha, e sim seu método pacífico de eliminar as
piores escolhas. Os conservadores fazem coro aqui, alertando para os riscos do
modelo democrático, sem, entretanto, rejeitá-lo completamente.
Os conservadores tiveram importante papel no necessário alerta de que
regimes democráticos podem se tornar despóticos. E, quando isso ocorre, costuma
ser a pior forma de tirania: aquela da maioria que aniquila o indivíduo. Este
receio é fundamental para a própria defesa da liberdade, possível somente em um
governo de leis, e não de homens com desejos arbitrários impostos aos demais.
Os conservadores defendem, então, um amplo mecanismo de pesos e contrapesos, o
respeito às instituições estabelecidas, o Common Law obtido
pela experiência local de inúmeros casos passados. Eles rejeitam as mudanças
radicais e nunca testadas, a total substituição de costumes estabelecidos por
sistemas paridos nas cabeças de idealistas que falam em nome do povo.
Michael Oakeshott fez a distinção entre a “política de fé” e a “política
do ceticismo”. A primeira entende que o governo deve buscar a perfeição humana,
que para todo problema há uma única solução racional, enquanto a última entende
o governo não como entidade benigna e perfectibilista, mas apenas necessária, e
que é impossível construir uma sociedade perfeita. No âmbito individual, cada
um buscará a perfeição à sua maneira, e não devemos colocar o governo ou a
sociedade como agentes dessa busca de perfeição.
Individualismo moderado
Os liberais são mais enfáticos na defesa do individualismo, ou seja, do
indivíduo como um fim em si mesmo, e não um meio sacrificável por um bem maior.
Os conservadores, se não aderem ao coletivismo, também não apreciam o
individualismo extremo. Ou seja, quando individualismo é confundido com
“sociopatia”, quando liberdade individual é confundida com licença para fazer
qualquer coisa desde que não agrida (fisicamente) o outro, aí o conservador se
torna um crítico do “liberalismo” radical.
Indivíduos não devem ser tratados como átomos totalmente independentes,
como ilhas. O conservador dá valor à comunidade local, à narrativa histórica
que caracteriza o próprio indivíduo. O apetite individual sem qualquer
restrição pode representar uma ameaça de desintegração da ordem social e, com
ela, da própria liberdade individual. Seria o caos anárquico. O psicopata, não
custa lembrar, não peca por falta de coerência, e sim por falta de remorso,
culpa, empatia.
Confesso que tenho simpatia por este alerta, pois a lógica
individualista levada ao extremo da coerência pode significar até a destruição
do núcleo familiar. Os filhos não assinaram contrato algum com os pais e,
portanto, devem ser livres para fazerem o que quiserem, em qualquer
idade?. Qualquer
restrição seria uma coerção ao indivíduo livre, pela ótica libertária.
Considero esta conclusão absurda. “Refreia as tuas paixões, mas toma cuidado
para não dar rédeas soltas à tua razão”.
Roger Scruton, falando sobre os limites da liberdade, explica que os
conservadores lutam para restringir de alguma forma o comportamento adulto de
olho nos interesses das gerações futuras, enquanto alguns liberais alegam que a
única coisa importante é a liberdade destes adultos aproveitarem como quiserem
o aqui e agora. Traçar esta linha divisória é tarefa quase impossível, mas
podemos pensar em casos que ilustram a divergência. Um deles é o aborto.
Existem diversos argumentos contra e a favor, e por inúmeros pontos de vista.
De nosso interesse aqui, porém, basta dizer que há quem defenda a prática com
base somente no “direito” da mãe fazer o que quiser com seu corpo. Já os
conservadores, mesmo os que não se limitam à base estritamente religiosa,
questionam até que ponto a banalização do aborto não afeta valores importantes
para preservar a sociedade.
Costumo manter a equidistância entre libertários e conservadores
religiosos aqui. Os primeiros alegam que o feto é como um “parasita” (Rothbard
usou o termo) no corpo da mulher, que faz o que quiser com ele. O aborto seria
legítimo até o fim da gestação. Os últimos acreditam que o feto, desde o
milésimo da concepção, é exatamente como um ser humano em direitos. A pílula do
dia seguinte seria equivalente a assassinato. Encaro ambas as visões extremas
como um erro. Para cada problema complexo, há uma resposta clara, simples e
errada.
Outro exemplo seria o consumo de drogas. O liberal radical diria que
esta é uma questão exclusivamente individual, de liberdade de escolha, enquanto
o conservador estaria mais preocupado com os possíveis impactos desta liberação
geral no seu entorno. O conservador, em geral, prefere não misturar liberdade
com libertinagem, pois esta coloca em risco aquela. Talvez seja possível uma
contemporização aqui, com a liberação de drogas leves como a maconha, sem
apelar para o “liberou geral”, enquanto o consumo é combatido por campanhas de
persuasão.
Construindo pontes
Estamos chegando perto do fim deste ensaio, e ainda há muito que dizer
sobre conservadorismo. Não tenho a pretensão de esgotar o assunto em espaço tão
reduzido. Gostaria agora, contudo, de tentar construir uma ponte ligando
liberais a conservadores.
O ceticismo e a cautela dos conservadores são excelentes ferramentas
para amainarem um pouco o excesso de otimismo dos liberais. Fazendo uma
analogia, os liberais seriam a juventude impetuosa, sonhadora, que quer tudo
para ontem, enquanto os conservadores seriam o adulto maduro e calejado,
desconfiado de toda grande empolgação. Um equilíbrio entre ambos talvez seja o
ideal.
O tradicionalismo serve para não jogarmos no lixo a sabedoria dos
antigos, sem cair no reacionarismo. O peso colocado nas emoções serve para
frear um pouco a arrogância de nossa limitada razão. A desconfiança em relação
ao ser humano nos leva a reconhecer que há sempre um monstro interior que o
progresso material não é capaz de eliminar. A preocupação com certos valores
lembra-nos que libertinagem não é liberdade. O respeito às virtudes
contrabalanceia a tendência iconoclasta e subversiva dos libertários. Até o
aspecto religioso pode, ao menos, nos mostrar que nem só de pão vive o homem,
em um mundo cada vez mais materialista onde tudo é mercadoria, inclusive o
amor. Por fim, o foco comunitário pode temperar nosso individualismo. A liberdade
individual existe em função da sociedade, e embora a cultura
seja fonte de mal-estar, como sabia Freud, é preciso renunciar a parte da
satisfação pessoal em prol dos ideais civilizatórios.
Pois ainda não inventaram nada melhor que a civilização, e nem vão,
posto que ela é o resultado de séculos de aperfeiçoamento, sem jamais tocar a
perfeição. Uma formação natural, se preferir, e não uma criação artificial.
Preservar os pilares que sustentam esta civilização, conservar tais
alicerces, sem saudosismo de um passado idealizado, mas sabendo avançar sempre
que possível e com cautela, eis a ponte que liga liberais a conservadores.
fonte: http://rodrigoconstantino.blogspot.com.br/2013/05/o-conservadorismo-pela-lente-de-um.html
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